A EDUCAÇÃO INFANTIL EM TEMPOS DE PANDEMIA
Há alguns meses estamos vivendo uma situação bastante distinta. A Pandemia do novo coronavírus atingiu a todos nós como uma espécie de tsunami. Essa gigantesca onda, ironicamente provocada por um vírus microscópico, tem varrido não apenas vidas, mas também instituições, projetos e planos, exigindo mudanças e adaptações de enorme amplitude.
Além disso, a pandemia tem gerado um intrigante efeito de exaltar questões que já existiam, mas que mantinham uma certa camuflagem, como a desigualdade social, os males da globalização, a fragilidade dos sistemas de saúde. E nessa lista eu considero necessário incluir a extrema ignorância sobre o papel da Educação Infantil pois, por mais que a questão tenha vindo à tona nesse momento, parece ainda não ter despertado nossa atenção como deveria.
Predomina uma postura de negligência com a educação das crianças pequenas e isso me preocupa imensamente.
O Contexto da Educação frente à Pandemia
Conforme países, estados e cidades foram fechando suas portas sob regime de quarentena e entendendo que o isolamento social era a melhor medida de proteção, as escolas precisaram rapidamente se adaptar à nova realidade.
As de ensino fundamental, médio, superior e técnico passaram a adotar plataformas para aulas online, sob o argumento de que crianças e jovens não poderiam deixar de receber os conteúdos e de contabilizar o número de horas-aula para validar o ano letivo. Os governantes, por sua vez, lançaram medidas, organizaram planos e emitiram decretos para que isso fosse devidamente cumprido.
Com relação a Educação Infantil (0 a 5 anos), a situação tem sido bastante diferente. A manutenção de atividades e encontros remotos também foi incentivada, mesmo em meio a um certo desconforto, por ser de conhecimento geral que o contato de crianças pequenas com tecnologias digitais, além de pouco eficaz, é fortemente desaconselhado por especialistas da saúde e educação.
De todo modo as escolas de educação infantil têm desenvolvido atividades via internet, ao menos com as turmas cujas faixas etárias permitem, visando preservar os vínculos com as famílias e das crianças com seus professores e colegas.
E mesmo se esforçando para agir do único modo autorizado, têm sido duramente criticadas. Por isso, não acredito que seja justo julgar o trabalho das escolas, que têm lutado bravamente, em muitos casos para manter sua sobrevivência.
Mas considero pertinente abordar a postura geral que a sociedade tem assumido com a educação infantil como um todo nesse momento ímpar, tanto por parte dos governos como das autoridades de saúde e educação de nosso país.
A questão da educação infantil, de forma geral, tem sido assim pensada:
1 – Não reprovação escolar: nessa etapa a transmissão de conteúdos não implica aprovação e reprovação escolar.
2 – Ausência de currículo rígido: não há por que se preocupar com ensinamentos cumpridos dentro de um período definido, pois na educação infantil o sistema de avaliação é diferente.
3 – Não obrigatoriedade: a educação passa a ser obrigatória apenas a partir de 4 anos de idade e, ainda assim, frequentar a escola nessa fase não é pré-requisito para o ingresso no ensino fundamental, o que torna essa obrigatoriedade praticamente inaplicável.
4 – Maior relevância das etapas posteriores: como a partir do ensino fundamental todos os níveis da educação têm preservado o trabalho e seus alunos devido a possibilidade de aulas remotas e/ou da obrigatoriedade legal, as escolas infantis ficaram isoladas em um grito de socorro que se tornou muito baixo para ser levado a sério.
Assim, esses argumentos têm sido suficientes para aliviar a consciência de todos e, como sempre, levar autoridades e a maior parte das pessoas a considerar que o foco deve estar exclusivamente nos demais níveis de ensino.
Diante dessa absoluta inconsciência sobre a extrema relevância dos primeiros anos para a formação de um ser humano, restou aos educadores e gestores escolares apelarem para um antigo jargão, que pensávamos ter ficado para trás: “Por favor, pensem nas escolas infantis porque os pais precisam trabalhar!”. E assim foi trazido novamente à tona o discurso registrado na história como uma marca dos tempos em que a educação de crianças pequenas não era um direito reconhecido.
Será que estamos pensando da forma correta?
Lamento ter que discordar incisivamente da posição que temos assumido, apesar de não me surpreender com ela. Afinal, não é de hoje que nossa sociedade se mostra cega para as necessidades pedagógicas dessa fase da vida.
As razões de minha divergência e enorme preocupação são bastante amplas, mas para não me estender demais, vou elencar neste artigo 4 motivos pelos quais deveríamos estar mais preocupados com a educação infantil do que com qualquer outra etapa nesses tempos de pandemia:
- Necessidade de Interações Sociais
Temos experenciado como nunca a necessidade das relações sociais, afinal a importância de alguma coisa jamais fica tão evidente do que quando somos privados dela.
Isso é válido para qualquer idade, entretanto nos primeiros 5 anos de vida as crianças estão se desenvolvendo de forma ímpar em todos os aspectos, de modo que a privação de contato com outras crianças gera lacunas em um momento delicado, uma vez que essas experiências são responsáveis por formar as estruturas física e psíquica do ser humano.
Em suma, se com o distanciamento social crianças mais velhas, jovens e até mesmo nós adultos ficamos entediados e sentimos saudades das pessoas, a situação para os menores de 5 anos é muito mais séria, pois é através das interações das crianças com outras crianças que se desenvolvem funções como a autorregulação, a capacidade de controlar os próprios impulsos, de direcionar os desejos, bem como o processo de individuação, bases para todo desenvolvimento e aprendizado futuro.
- Necessidades Neurológicas
Sem dúvidas ficar distante da escola e dependente de aulas via internet traz uma série de dificuldades a serem consideradas em todos os níveis educacionais. Entretanto, a partir do ensino fundamental muitas matérias podem ser transmitidas remotamente sem que isso resulte em graves prejuízos didáticos.
Além disso, para crianças a partir dos 7 anos, deixar de aprender algum conteúdo escolar ao longo de um ano letivo não significa nada além de ter que repor esse conteúdo no ano seguinte. Contudo, no nível infantil a situação é bastante distinta.
Na verdade, para os menores de 6 anos os conteúdos cumprem um papel, mas não o mais relevante, nem mesmo em tempos de normalidade. A grande questão é que os primeiros anos de vida representam o período mais fértil e crítico para o desenvolvimento cerebral de um ser humano, o qual depende essencialmente de experiências concretas e da proximidade física de outras pessoas. Negligências nessa fase significam sérios danos que podem perdurar por toda a vida.
- Necessidades Cognitivas
Dentre as preocupações de muitas pessoas com o desperdício de um ano letivo, a alfabetização figura como uma das principais. Certamente nos incomoda que uma criança, podendo aprender a ler e escrever aos 8 anos de idade, tenha que fazê-lo aos 9 anos. Mesmo porque quando ela aprende a ler, passa a ler para aprender mais.
Porém há uma questão de extrema relevância que praticamente inexiste no debate educacional brasileiro. Trata-se do fato de que nos primeiros 5 anos de vida é quando estão abertas as grandes janelas de oportunidade para a criança estruturar os pilares mentais que lhe permitirão ler, escrever e aprender todo tipo de conteúdos no futuro.
Falhas educacionais nesse período da vida se tornam cumulativas e levam a atrasos cognitivos cujos impactos serão percebidos apenas anos depois, quando pode ser tarde demais.
As maiores provas que temos da veracidade deste argumento são as absurdas taxas de analfabetismo do Brasil. Há anos nosso país vem fazendo malabarismos no ensino fundamental buscando aprimorar o processo de alfabetização, esforço que sem dúvidas é importante. Mas enquanto seguirmos pensando que as necessidades dos primeiros anos de vida se resumem a papinhas e fraldas limpas, continuaremos distantes da reversão desse problema.
- Necessidade de movimento
De forma análoga a outros elementos que comentamos, o movimento também é uma necessidade para qualquer pessoa, e crianças de todas as idades ficam aborrecidas quando suas atividades físicas são restringidas, como tem ocorrido nesses dias de quarentena.
Entretanto, o que para outras idades não passa de um incômodo passageiro, para os primeiros 5 anos se transforma em um problema de graves consequências. Conforme mencionamos, essa é a fase mais relevante e crítica para o desenvolvimento cerebral, e o movimento é justamente um dos principais ingredientes para que esse processo transcorra de maneira saudável.
Por isso, o fato de que hoje muitas famílias necessitam estar trancadas em pequenos apartamentos com seus bebês e crianças pequenas, sem espaço e condições adequadas para a expressão do movimento, deve ser motivo de reflexões urgentes e profundas.
O que pensar disso tudo?
Em uma recente entrevista, Jack Shonkoff, Diretor do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard, um dos mais prestigiados do mundo, foi assertivo ao dizer que quando se deparou com as medidas adotadas para conter o coronavírus, pensou: essas orientações são exatamente o contrário do que uma criança precisa para se desenvolver bem!
Creio que o comentário do cientista de Harvard seja oportuno para esclarecer meu objetivo com esse artigo, que é acima de tudo provocar reflexões, quiçá seguidas de ações bem pensadas. A afirmação de Shonkoff nos leva a reconhecer que estamos diante de um momento muito distinto, em que a ciência de contenção de um vírus se confronta com a ciência do desenvolvimento infantil.
Ainda não sabemos exatamente qual é a saída para esse problema, mas estou certo de que o conformismo e a passividade que temos assumido com relação à educação infantil não apenas nos distancia de uma solução, como nos coloca em uma condição perigosa.
Nesse contexto, os perigos mais preocupantes parecem ser aqueles que se ocultam em atitudes superficialmente corretas e honrosas, as quais podem ser representadas por uma das frases mais em voga nesses tempos de pandemia, que é justificar nossas ações sob o argumento de que devemos “salvar vidas”. Não há dúvidas que estamos todos de acordo com essa proposta, porém acredito que devamos procurar responder com mais profundidade à pergunta: o que é salvar vidas?
Um dos mais eminentes pensadores contemporâneos, o italiano Giogio Agamben, vincula essa postura com seu mais destacado conceito, o de vida nua, que está relacionado à compreensão da vida como mera sobrevivência.
Agamben afirmou em matéria publicada recentemente sobre o contexto da pandemia que o momento atual tem comprovado sua tese, de que nossa sociedade toma como valor máximo manter as funções vitais e esquece que a vida é algo muito mais amplo do que isso.
Essas são férteis ideias para refletirmos sobre a primeira infância, que de todas as etapas da vida humana, certamente é a mais associada ao simples sobreviver, o que significa considerar que a criança pequena necessita apenas comer, ir ao banheiro e dormir. Nada mais injusto com a fase mais fértil da vida humana para o desenvolvimento e aprendizado!
Sem dúvidas que precisamos antes de tudo assegurar a sobrevivência das crianças, mas reduzir nossa visão de vida exclusivamente aos atos de respirar e ter um coração pulsante não faz jus a tudo o que envolve uma vida humana. Portanto, sim, salvemos vidas, vidas físicas, mas também vidas psicológicas e mentais, pois todas essas são VIDAS a serem protegidas e salvas!
O que podemos fazer?
Recentemente ouvi a declaração de uma autoridade de educação se isentando de pensar a retomada das atividades presenciais nas escolas, sob o argumento de que isso é atribuição exclusiva dos profissionais de saúde.
Essa atitude me trouxe a triste recordação histórica do período pós guerra, no século XIX, quando a Europa superlotou os orfanatos com órfãos que haviam perdido seus pais em combate e contratou equipes de enfermeiras e médicos para que as crianças fossem apenas alimentadas e higienizadas, pois considerou-se que isso bastava.
Anos depois o que se viu foi uma verdadeira catástrofe humana resumida pelo termo hospitalismo, marcada por crianças com problemas físicos e psicológicos de todo tipo.
Frente a um contexto de tal complexidade como o que estamos vivendo, não estou propondo simplesmente a abertura imediata e irresponsável das escolas. Mas também não posso concordar com a situação de inúmeras crianças que hoje estão em casa, passando mês após mês desse período excêntrico frente a televisores e aparelhos eletrônicos, cuidadas por babás dotadas de boa vontade, mas sem formação adequada, ou por pais bastante preocupados com os próprios filhos, mas igualmente desprovidos de condições para oferecer o que essa etapa de vida necessita.
Considero que não temos o direito de nos conformar com essa situação. Necessitamos convocar os educadores para junto com as autoridades de saúde pensarem em soluções globais.
Afinal, quando tudo isso passar, não espero que tudo volte a ser como era, assim como não tenho expectativas de transformações significativas na sociedade, pois sinceramente acredito que, mais do que uma pandemia, são necessárias profundas mudanças educacionais para nos fazer melhores. Sou mais modesto e espero somente que, quando tudo isso passar, não precisemos nos sentir constrangidos pela grande injustiça que estamos cometendo com as crianças pequenas.
Em tempos duros como esses, em que assistimos diariamente o trágico espetáculo de algo sério como uma pandemia ser friamente transformada em oportunidade para atender interesses econômicos e partidários, as sensíveis sementes da infância estão lançadas em um solo árido demais para germinar. Apesar disso, faço votos para que nossos educadores – mesmo sozinhos e sem qualquer apoio – não se cansem de trabalhar para regar e manter vivos seus pequenos jardins, pois eles são a esperança de que um dia tenhamos um mundo melhor para todos.
Diretor do Colégio Acadêmico Florença, Doutor em Educação e pesquisador da infância há quase 15 anos. Segue conduzindo seus estudos e pesquisas aliados a uma profunda experiência prática em contato direto com as crianças e educadores. Autor dos livros Pedagogia Florença 1 – bases para educação infantil de 0 a 3 anos e O Lenhador.